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SENTIENDI É UMA FARSA

  • Foto do escritor: JooJ
    JooJ
  • 9 de mar.
  • 5 min de leitura

A partir do momento em que eu entrei no servidor da Novel Brasil, não demorou muito até ser martelado algumas dezenas de vezes pelas estruturas básicas de um texto narrativo — dos quais eu era totalmente ignorante. Um desses artifícios foi o verbo de elocução — declarandi ou dicendi — o indicador de um discurso direto.


— Fujam! É mais um artigo de gramática! — gritaram os tutorandos.


Calma! Não fujam de mim ainda. Eu prometo: este será divertido.


Pra início de conversa, vocês já devem estar careca de saber que “gritaram” é o dicendi da frase. Se não sabe, vá imediatamente ler o artigo introdutório escrito pelo nosso amado Velho — Kamo Kronner — pois hoje o nosso papo será sobre o irmãozinho do dicendi: o verbo sentiendi.


O problema dos diálogos internos

Para amarrar as pontas soltas logo de início, precisamos nos lembrar que o discurso direto é uma forma de transmitir a fala de um personagem exatamente como foi dita, isso é, quando o próprio personagem diz algo.


Enquanto, por outro lado, um discurso indireto é caracterizado por um falante o qual reproduz a mensagem, transpondo-a com suas palavras.

Certo, sabemos a definição de dicendi e de discurso direto e como esses dois se relacionam. Mas uma fala é o único meio pelo qual um personagem tem de se comunicar?


Ou melhor, a única forma do personagem emitir uma mensagem é a partir de uma fala? Como já devem imaginar: não, não é. E qual seria uma outra forma do personagem se comunicar de forma direta, então?

“Quem é aquela mulher do lado do Carlos Alberto?”

Percebam: isso não foi verbalizado por Maria, isso é, não saiu da boca dela. Ela não declarou essa frase, mas pensou nela. Sim, nós vamos falar sobre pensamentos.


E, logo de cara, nós temos um problema. Devemos, então, usar dicendi para sinalizar pensamentos? Não. Ou melhor, não exatamente. Seria estranho se os pensamentos fossem acompanhados pelo exato mesmo tipo de verbo que as falas.

“Quando ele vai parar de falar?”, disse João. “Finalmente!”, gritou Sandra.

Não parece certo, não é? Bom, não seria correto dizer que não estão. Para ser mais preciso, o desconforto aqui é: não parecem pensamentos.


E a questão fica ainda mais complicada se relembrarmos como algumas das regras de sinalização funcionam. Lembram-se que, por convenção, usa-se travessão para indicar um diálogo e aspas e itálico para indicar pensamentos?


Pois é, textos escritos em inglês seguem regras um pouco diferentes. A nossa espada de Dâmocles surge quando percebemos os diálogos na gringa sinalizados pelas mesmas aspas que por aqui, no português, sinalizam pensamento.


Ou seja, um leitor acostumado com livros em inglês provavelmente confundiria os trechos do exemplo com falas, enquanto um leitor acostumado com a sinalização brasileira — isso é, o travessão — simplesmente ficaria confuso.


Para ilustrar melhor, vamos voltar ao primeiro exemplo deste tópico. “Preciso fugir! É mais um artigo de gramática!” Ótimo. Agora transformada uma fala em um diálogo interno, precisamos de uma forma de indicá-lo. “Falar”, “dizer”, “gritar” e outros dicendi mais comuns não conseguirão fazer esse trabalho, visto que tudo vai simplesmente parecer uma fala.


E é aqui onde os verbos sentiendi surgem.


O que é um verbo sentiendi?

SENTIendi são verbos de SENTImento, ou pelo menos é assim que ensinam por aí — tenha calma, pois já já chegamos lá. Isso quer dizer que ao invés de indicar uma fala, como “disse” e “falou”, eles sinalizam ações ligadas ao interno do personagem, à parte mental dele.

Percebam: assim como o dicendi, os verbos “adivinhar” e “lembrar” demonstram quem está pensando (3ª pessoa, ou seja, um personagem fora o narrador), quando ela pensou (pretérito perfeito) e de qual forma essa ação ocorreu (lembrar, adivinhar, lamentar…).


Verbos de elocução só existem quando enunciam discurso?

Assim como o dicendi, que tem regrinhas de pontuação — regrinhas essas pelas quais eu tenho certeza que você já teve alguma dor de cabeça —, o sentiendi também tem algumas convenções. Antes disso, no entanto, precisamos clarear uma coisa: como identificá-lo.


Se é assim, então tente me dizer em quais desses exemplos existe um verbo sentiendi:

1,2,3… em todos! Sim, em todos. Apesar da pontuação ser diferente, ela não importa quando a métrica é “há dicendi/sentiendi nessa frase?”.


Se existe um verbo indicando pensamento ou sensação que estimule um dos 5 sentidos, então existe um sentiendi. E o mesmo, aliás, se aplica ao dicendi. Tendo verbo de elocução, há dicendi.


Sentiendi é uma farsa

Farsa? Espera, você me explicou tudo isso pra no fim me dizer que é mentira?


Não! Digo, sim. Ou melhor: calma! Não é bem assim.


Se eu lhe disser: “sentiendi são verbos de sentir” — isso é, indicadores de que o personagem experimentou algum sentimento —, isso estaria correto?


Sim? Não? Mais ou menos? Bom, a verdade é que essa é a definição em grande parte dos sites de português e gramática. A questão aqui é que essa não é uma explicação exata e muito menos satisfatória para nós, escritores com o desejo de aprender o seu melhor funcionamento.


Se pesquisarmos a etimologia da palavra, entenderemos que sentiendi está muito mais ligado à ideia de ter a sensação de algo, ter a percepção de alguma coisa, e não de um sentimento.


A partir dessa linha de pensamento, “perceber pelos sentidos” e “experimentar uma sensação” estão muito mais próximos de uma definição real do sentiendi do que “Ter um sentimento”.


Lembram-se do que eu falei antes sobre os 5 sentidos? Pois é. Eu adicionei uns exemplo propositalmente confusos lá em cima para podermos aprofundar essa ideia agora.

Gabriela entrou na igreja em prantos. “Por quê? Por que, Deus?”, ajoelhou-se no chão e começou a orar. “Por favor, meu querido Deus! Tenha misericórdia dessa sua fiel serva.”

Provavelmente você leu esse exemplo uma ou duas vezes e se perguntou: “Ora… mas cadê o maldito sentiendi nesse trecho?”. Para entender isso, vamos voltar alguns anos no tempo.


Lembro-me da tia Claudinha, professora do jardim de infância que me ensinou que o meu nariz podia sentir cheiros — e esse era o olfato —, minha boca podia sentir o gosto das coisas — o paladar —, minha pele sentir o toque — o tato —, meus olhos podiam ver — a visão — e meus ouvidos captar os sons — a audição.


Quando eu digo, portanto, que a personagem “ajoelhou-se”, não seria essa uma ação a qual estimula a sensação sensorial do tato, como tocar, olhar, pegar, sentir e tantos outros? Se é, então é um sentiendi. Sendo um sentiendi, vem em minúsculo.


Mas vem mesmo?


Entre os escritores e linguistas, há aqueles que não acham correto o sentiendi vir em minúsculo se não exprime um sentido de fala. Por esse motivo, uma saída para esse problema — isto é, uma outra forma de interpretá-los — proposta pelos gramáticos é que quando utilizamos esse tipo de verbos para indicar uma reação sensorial do personagem a alguma ação ou acontecimento após uma fala, o dicendi ainda existe e está, na verdade, elipsado.

— Olha o quão bonita ela é, mãe! — pegou a boneca. — Olha o quão bonita ela é, mãe! — pegou a boneca [depois de falar].

Tendo elucidado a questão sobre os verbos sentiendi, agora podemos entender mais como eles funcionam e então aplicá-los da forma correta em nossa escrita. Mas lembre-se: há uma diferença entre um verbo sentiendi e um verbo que é usado como sentiendi — posto como sinalizador de pensamento/percepção; assim como há uma diferença entre um verbo dicendi e um verbo colocado como dicendi.


Por exemplo:

— Ela deve estar me traindo! — teorizou. Ela deve estar me traindo!, teorizou.

Como pode ver, “teorizar” serve tanto para falas como para pensamentos. Ele é “neutro”, digamos assim. É aceitável usá-lo tanto para um quanto para o outro, diferente de “anunciar”, por exemplo, que seria bem estranho se usado para pensamentos.


E é bom esclarecer que “teorizar” é um sentiendi em sua definição, pois retrata um processo mental realizado pelos sentidos/pela percepção.


Por que estou falando isso? Porque, quando usamos um verbo de percepção/pensamento (sentiendi) no lugar de um verbo de elocução (dicendi), este sentiendi se torna um dicendi — não em sua definição própria e individual, mas em sua execução —, tendo em vista que passa a referir-se à elocução de alguém — à expressão de um pensamento através da fala (“elocução” segundo a Oxford Languages). E o mesmo acontece para verbos dicendi postos como sentiendi. Por isso, mais uma vez eu digo: o sentiendi é uma farsa.


 

Dito isso, lhe agradecemos, caro leitor, por ter lido até aqui. Esperamos que você continue estudando cada vez mais para aprender o máximo possível. Nos vemos no próximo artigo!

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